Com palestrantes de São Paulo, Santa Catarina, Bahia, Londrina e Maringá, temáticas diversificadas marcaram o evento que conectou as turmas de Cascavel, Francisco Beltrão e Umuarama
A Universidade Paranaense – Unipar realizou mais uma Jornada Integrada, via Youtube. Evento reuniu estudantes e professores dos cursos de Psicologia de Cascavel, Francisco Beltrão e Umuarama, além de egressos e profissionais e foi valorizado com nomes que são referência em diversos cenários da profissão.
A abertura dessa 1ª Jornada foi com a psicóloga Cristina Fukumori Watarai, que contou a história do seu livro ‘O Segredo da Tartanina’ como estratégia para atendimento psicológico e na prevenção do abuso sexual infantil. Com mestrado na área, ela é também professora.
Ao iniciar sua fala, ela compartilhou pesquisa que mostra a importância de pensar na magnitude do problema, já que os dados são alarmantes: 1 em cada 7 meninas e 1 em cada 25 meninos serão abusados antes de completarem 18 anos; e 58% da população da América Latina sofrem abuso físico, sexual ou emocional a cada ano.
Em sua fala, Watarai instigou reflexão sobre o que é abuso sexual, onde acontece e a gravidade do ato – proximidade do agressor, o número de agressores, a topografia do ato sexual, duração do abuso, frequência e apoio dado à vítima pelo membro não agressor e rede de proteção.
Também falou de sinais e sintomas, fatores de risco e de proteção e o papel do psicólogo diante do problema, lembrando que o campo de atuação do psicólogo abrange a avaliação, prevenção, atendimento e tratamento.
“Não basta apenas a punição e responsabilização dos órgãos de justiça e segurança pública. Temos vítimas que não sabem para onde correr, para quem contar e muitas vezes vão para o caminho da solidão, do silêncio ou para o caminho mais agravante, que é o da repetição da violência, da continuação”, alertou.
A psicóloga contou também que o projeto Tartanina surgiu da prática: é uma construção coletiva de três profissionais, no intuito de dar voz às vítimas silenciadas pela violência.
Gênero, sexualidade e educação
De Maringá, palestrou a psicóloga e professora da Universidade Estadual de Maringá, Eliane Rose Maio. Ela, que é pós-doutora em Educação Escolar, falou sobre ‘Gênero, sexualidade e educação’, focando o caso que a instigou a querer estudar sobre o tema nos últimos 37 anos.
“A melhor educação sexual é a familiar, a emancipadora, porque é olho no olho, faz ter vontade de perguntar, faz ter conhecimento. A palavra mais digitada no Google é sexo, se ninguém conversar com a criança, ela joga no Google e inúmeros resultados vão aparecer e ela não está preparada cognitiva e nem psicologicamente para isso”, afirmou.
E apresentou dados: 80% dos casos de violência sexual acontecem dentro de casa, 96% por pessoas heterossexuais e com crianças até 8 anos de idade. “Falar de sexualidade é para prevenir”, disse. Ainda expôs: “O Brasil é o país que mais mata travesti, e o que mais assiste filme pornô de travesti no mundo... a conta não bate; eu luto pela diversidade sexual”.
Também conceituou o que é gênero e falou de construção do masculino e feminino. Argumentou que meninos ganham dinossauros, monstros e carros, brinquedos que remetem ao espaço público; já as meninas ganham bonecas, casinhas e panelinhas, brinquedos que remetem ao espaço privado.
“Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros rompem com o sistema dominante, estão além das barreiras conceituais do que é sexo, identidade de gênero e orientação sexual. Eles convidam a sociedade a uma visão mais ampla e diversa, mas são alvo de discriminação, preconceitos e violências”, destacou.
Sobre o papel da escola na articulação do tema, acredita que incentivar discussões de gênero e diversidade sexual nas instituições de ensino visa a contribuir para a diminuição das desigualdades e discriminações sociais. “Essa discussão, se acompanhada de práticas democráticas e científicas escolares, pode contribuir para a diminuição da violência”, sinalizou.
Psicologia e colonialidade
Com analogia bastante interessante, direto da Bahia, o psicólogo Rafael Siqueira de Guimarães abordou o tema ‘Cozinhar a Psicologia com os desafios da colonialidade’. Sua fala versou sobre o lugar da colônia, do colonizador e do colonizado.
“Cozinha tem papel importante na minha história. Ela está na maneira de pensar a saúde, a vida, a prática profissional, a Psicologia, a arte, a importância de quando fazemos o cozimento, pois é ele que potencializa cheiros, cores e sabores”, relacionou.
O palestrante falou do movimento de atores pós-coloniais, estudos baseados na Índia, e fez referência ao autor do grupo modernidade e colonialidade, Aníbal Quijano. Destacou que seu modo de olhar o mundo e sentir o outro traz três dimensões: relações de poder, que se estabelecem a partir do processo colonial; a colonialidade do saber, que impacta a maneira de organizar o pensamento; e a colonialidade do ser, que impacta a subjetividade.
“Tudo isso vai se desdobrar para diversas questões”, afirmou. Segundo ele, a colonialidade remete à ideia de hierarquia racial e hierarquia de gênero e todas as hierarquias organizam a maneira como somos no mundo.
“A colonialidade se coloca, se impõe e atravessa todos os nossos cotidianos. Vamos nos constituindo com processos violentos, destituição de território, massacre do povo originário, tráfico de pessoas que são escravizadas”, lamentou.
Para o psicólogo, esse processo se constitui como maneira de organizar a sociedade e tem seus impactos: “Tudo o que somos paulatinamente vamos nos construindo enquanto colônia, na tentativa de nos espelharmos nas metrópoles, porque são superiores hierarquicamente; são a Europa ocidental as matrizes que criaram esse mundo, que era primitivo. E, ao nos conformar, vamos vendo as marcas - racismo, sexismo, hierarquias”.
E acrescentou: “Nunca seremos como a metrópole, nossa história é outra, nossa composição é muito distinta, mesmo com esse processo de conformação, de assujeitamento aos processos coloniais que incidem sobre nosso modo de ser e de trabalhar como psicólogos”.
Guimarães contextualizou que a Psicologia não está apartada do processo colonialista: ela nasce para controlar e prever comportamentos dos pesquisadores, cientistas, hierarquizar escolas, controlar os regimes militares, testar quem é mais ou menos inteligente. “Nasce como uma ciência que serve ao sistema”, assegurou.
Compromisso social
Outra convidada importante da 1ª Jornada Integrada de Psicologia da Unipar é de São Paulo. Autora de livros que são base para a Psicologia, Ana Mercês Bock recebeu elogios no chat. A doutora falou sobre ‘E a Psicologia, como fica? Para onde vai? Perspectivas e desafios para os próximos anos’.
A ideia foi pensar que Psicologia queremos para o Brasil e o compromisso que essa ciência tem mantido com a sociedade, pensar quem é o sujeito para a Psicologia, concepção de fenômeno psicológico e como ele aparece.
Bock afirmou que é necessário e importante ter um projeto para a Psicologia, pois os trilhos vão ser desenhados considerando as necessidades e as urgências da sociedade e conforme interferência importante da categoria e entidades da Psicologia.
“Como vamos por trilho sem saber para aonde queremos ir? Que tipo de cidadania queremos incentivar com a nossa prática profissional?”, indagou. Para ela, responder essas perguntas exige pensar nos projetos existentes.
“A Psicologia é um projeto da elite, de modernização do país. Não havia preocupação com desigualdade e racismo. Questões sociais não eram temáticas da Psicologia, porque não eram as preocupações da elite”, afirmou.
Embasada em contextos históricos, a palestrante observou que a elite brasileira alimentava desde anos 1940 o sonho de modernizar a sociedade, sonho de um país industrializado, com maior espaço para os conhecimentos que apresentassem uma tecnologia voltada a resolver qualquer problema social, e a Psicologia tinha os testes psicológicos.
“A Psicologia possuía uma tecnologia capaz de responder a uma demanda social – precisava selecionar os trabalhadores que atraia da zona rural para a área urbana; depois precisava preparar as crianças para trabalhar, para serem futuros operários, ensinar rapidamente a serem competentes”, situa.
Segundo discorreu, foi a partir dos anos 1980 que surgiram outros temas no campo da Psicologia, como alienação, consciência crítica, que mostravam a mudança nos trilhos.
“Há um questionamento nesse período de que há um mundo psíquico abstrato, enclausurado no sujeito, e que esse é o verdadeiro eu, e há um mundo que está acontecendo aí. Esse processo levou a uma visão naturalizada do humano, à afirmação de um padrão burguês que não servia para a camada pobre”, apresentou.
Também lembrou que mais tarde surgiram novas discussões: a psicologia passou a ter preocupação com a relevância social do que se estudava e foi nesta trajetória que surgiu o projeto de compromisso social, que vai trabalhar para a garantia de direitos, políticas públicas, ênfase no trabalho disciplinar, desigualdade social, ampliação e fortalecimento de relações democráticas.
“Psicologia rima com democracia. Se nós trabalhamos para o bem-estar do sujeito, desenvolvimento da autonomia, capacidade de se inserir no coletivo de forma criativa e transformadora, se tudo isso é verdade, é verdade que esse sujeito para ter esse desenvolvimento não precisa só de psicologia, ele precisa estar numa sociedade onde possa ter voz, possa se organizar para reivindicar e para traçar sua história de vida”, completou.
A clínica existencialista de Sartre
Docente da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Daniela Schneider é referência no meio acadêmico em todo o país. A doutora foi convidada para encerrar a Jornada, falando sobre ‘A clínica existencialista: caminhos para sua construção’.
A professora fez um apanhado sobre a constituição do processo da clínica existencialista e suas especificidades, caminhos de Sartre em direção à psicologia clínica, suas obras e sua relação com a psicanálise. “Sartre tinha a compreensão de que o psiquismo não se encerra em si mesmo, mas indica um além dele próprio, compreende a historicidade desse sujeito e os contextos sociais e culturais que está inserido”, pontuou.
Schneider observou que na relação com o marxismo e com as condições de classe social, raça e gênero é possível entender como os macrodeterminantes atravessam as vivências subjetivas microssociais: “Nessa dialética entre a psicanálise e o marxismo, Sartre vai propor essa inovação que é a psicanálise existencial, que rompe com a psicanálise ao fazer uma análise macroestrutural e rompe com o marxismo por voltar-se também à subjetividade”.
Ela também apresentou as diferenças de método, entre a psicanálise freudiana e a psicanálise existencial, falou do caminho da ontologia para a Psicologia, fazendo referência à obra ‘O Ser e o Nada’.
“Na Psicologia clínica em Sartre, o sujeito é ativo no processo, que é baseado na corresponsabilização. É uma clínica compreensiva e não interpretativa, é uma clínica de primeira pessoa, que pega os sentidos que vem de dentro, do vivido, do singular. O objetivo é que esse sujeito consiga resgatar em sua historicidade aquilo que é o sentido do seu projeto de ser”, explicou.